Brasil tem recorde de 30 milhões de pessoas recebendo até um salário mínimo
Levantamento da consultoria IDados mostra que número de brasileiros com renda do trabalho de até R$ 1,1 mil é o maior desde 2012. Baixa remuneração se soma ao cenário de inflação elevada, o que afeta o orçamento das famílias.
No Brasil da alta inflação, 30,2 milhões de pessoas – pouco mais do que toda a população da Venezuela – sobrevivem com até um salário mínimo. Nunca tantos estiveram nessa condição. A quantidade de brasileiros que consegue uma renda mensal de até R$ 1,1 mil, obtida a partir do trabalho, atingiu um patamar recorde.
Os números integram um estudo elaborado pela consultoria IDados, com base nos indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do segundo trimestre.
“As pessoas estão encontrando um mercado de trabalho diferente do que existia antes da pandemia. É um mercado em que muitas empresas faliram, quebraram. Grande parte das opções de emprego não existe mais”, afirma Bruno Ottoni, pesquisador do IDados e autor do levantamento.
“Muita gente entra no mercado como conta própria ou informalmente, e essas pessoas tendem a ter um rendimento mais baixo do que aquelas que trabalham com carteira”, acrescenta.
Como proporção do total de ocupados no Brasil, são 34,4% de trabalhadores recebendo até um salário mínimo – o patamar também é o mais alto já apurado desde o início da série histórica, em 2012.
O que a pesquisa revela, portanto, é que os brasileiros podem até conseguir algum tipo de trabalho, seja na informalidade ou como conta própria, mas estão sendo mal remunerados. E essa dificuldade ganha contornos ainda mais dramáticos porque o orçamento das famílias tem sido corroído pela alta de alimentos, energia elétrica e combustível: no acumulado de 12 meses, a inflação já está próxima de 10%.
“Para essa parcela da população que já tem um rendimento muito baixo, a situação fica ainda mais preocupante, porque grande parte da inflação afeta mais fortemente essa faixa da população”, diz Ottoni.
Ao longo da série histórica, iniciada em 2012, o menor número de trabalhadores com rendimento de até um salário mínimo foi observado no auge da pandemia, quando muitos brasileiros saíram do mercado por causa da crise sanitária, especialmente os mais pobres. No terceiro trimestre do ano passado, 17,6 milhões pessoas tinham uma remuneração equivalente ao mínimo.
“A fatia do PIB que vai para o trabalho não é tão pequena assim, mas está muito mal distribuída. Há uma fração muito grande de trabalhadores brasileiros recebendo um salário muito baixo”, afirma Ricardo Paes de Barros, professor titular do Insper.
Negros mais prejudicados
Num recorte detalhado, os números do levantamento do IDados mostram um cenário ainda mais perverso para alguns grupos. Dos 30,2 milhões de trabalhadores que ganham até um salário mínimo, quase 20 milhões são negros.
Hoje, 43,1% dos negros ocupados recebem até R$ 1,1 mil. No quarto trimestre de 2015, no melhor momento da série histórica, 34,4% ganhavam até o salário mínimo.
“As políticas de ação afirmativa tiveram resultados importantes. Há muitas políticas de acesso à universidade, mas nós tivemos menos políticas no mercado de trabalho”, afirma Ottoni. “Apesar de o país ter tido ganho de escolaridade da população negra, os avanços não foram expressivos no mercado de trabalho.”
Milagre e mágica no orçamento
Em Salvador, a manicure Creude Gomes, 44 anos, viu a sua renda do trabalho cair pela metade depois que a pandemia começou. Hoje, ela consegue R$ 150 por mês. Antes, ganhava R$ 300.
“Por cauda da pandemia, muitos clientes pararam de fazer unha. Agora, um ou outro está voltando devagar”, diz.
Com a queda na renda e a alta dos preços, a manicure diz que faz um “milagre” no orçamento de casa. Já cortou a carne das suas compras, por exemplo. “A gente fica buscando o que está mais em conta para poder sobreviver”, afirma.
O pequeno alívio no orçamento de Creude vem do Auxílio Emergencial – ela recebe R$ 375 por mês –, mas nem isso impediu que a manicure atrasasse a mensalidade da filha num colégio particular.
“Já são cinco meses atrasados”, diz. A mensalidade é de R$ 400, e a filha, que está no nono ano, tem uma bolsa de 50%.
Também em Salvador, na casa de Sueli Jesus, 43 anos, a alta da inflação fez com que o prato principal virasse frango e ovo. “É o que está mais em conta. A gente aprendeu a fazer mágica com o preço dos alimentos.”
Sem conseguir emprego, ela é beneficiária do Auxílio Emergencial e passou a vender picolé para complementar a renda. Com a proximidade do verão, espera conseguir entre R$ 100 e R$ 150.
Sueli mora com o filho e tem a ajuda do pai aposentado para pagar as despesas da casa. Todo mês também recebe uma cesta básica.
“As coisas já eram ruins e, com essa pandemia, tudo ficou mais difícil ainda”, conta. “Já espalhei currículos em vários lugares e para todas as áreas.”
E o que é possível fazer?
Com uma elevada quantidade de trabalhadores mal remunerados, o país tem um longo caminho a percorrer para garantir a inclusão produtiva dos brasileiros.
Segundo Ricardo Paes de Barros, um dos criadores do Bolsa Família, o país deveria:
Atualizar a legislação trabalhista e desonerar a folha de salário do mais pobre;
Oferecer formação profissional gratuita;
Garantir a cooperação entre governos, iniciativa privada e sociedade civil para a inclusão produtiva.
Na leitura de Paes de Barros, é “meio absurdo” o país cobrar contribuições sociais dos trabalhadores mais pobres.
“Qual é o sentido de um trabalhador que ganha um salário mínimo ou o empregador dele pagarem contribuições para Previdência ou para o Sistema S?”, questiona o professor do Insper. “Você deveria desonerar esses trabalhadores plenamente, de tal maneira que o custo da mão de obra fique mais baixo para aumentar a demanda pelo trabalho dele e, consequentemente, elevar o salário dessas pessoas.”
Um segundo ponto levantado por Paes de Barros é garantir a contínua formação de trabalhadores, bancada pelo governo, enquanto eles estão empregados: “O trabalhador pode decidir com a empresa qual vai ser o próximo passo na progressão profissional dele.”
Por fim, ele diz que deve haver uma grande coordenação envolvendo os governos federal, estaduais, municipais, a iniciativa privada e sociedade civil para que ocorra a inclusão produtiva dos trabalhadores.
“Muito da inclusão dos mais pobres depende da ação local”, afirma o professor do Insper. “A única maneira de fazer a intermediação de mão de obra é ter um serviço na ponta.”
Nesse cenário, os municípios teriam a responsabilidade de identificar áreas com potencial para garantir emprego, e o governo federal seria responsável por destinar recursos.
No começo de setembro, o Senado rejeitou uma medida provisória criava regras flexíveis para a contratação de jovens e tinha programas voltados ao primeiro emprego e à qualificação profissional.
Entre os programas que seriam criados, estavam o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore), Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip) e o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário.
Fonte: G1
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